Sobre ser mulher, mãe e militante
Maria Elisa Horn Iwaya
Todo mundo vê o mundo a partir de alguma ótica e neste mesmo
processo é visto também, segundo conceitos formados pelos mais
variados fatores, que podem passar pela sua formação familiar, suas
crenças religiosas, sua vivência dentro de determinado grupo
étnico, a classe em que está inserido etc. E esta relação do
indivíduo com a sociedade é sempre dinâmica, afinal o que somos
hoje, a forma como nos entendemos, como nos relacionamos, pode
alterar-se radicalmente a cada minuto.
Quando conheci o movimento estudantil, eu tinha 14 anos, estava no
colégio e de lá pra cá, muita coisa mudou em mim e no mundo. Eu vi
um sociólogo passar anos sem abrir uma única sala de aula no país
e vender boa parte do que era patrimônio do povo à preço de banana
e vi o operário, enfim, chegar à presidencia e mudar radicalmente a
cara do nosso sistema de ensino e transformar o Brasil, de país do
futuro, à exemplo no combate a pobreza e a fome.
Assim como o mundo deu voltas, minha vida mudou muito também. Tive
filhos, fui para a universidade, descobri que a profissão de
professora pode ser ao mesmo tempo uma das experiências mais
gratificantes e mais sofríveis, larguei tudo, quis começar do zero,
abri mão de muita coisa, mudei assim como o mundo que continuou
girando.
Elegemos a primeira mulher presidenta; um país do norte,
extremamente racista, elegeu um presidente negro; o continente
europeu entrou em uma crise que afetou quase todas as economias;
ditaduras cairam como peças de dominó. Todo este movimento me faz
lembrar que nada do que parece 'estável' de fato é, que não existe
nada que não possa ser alterado e que as mudanças, que pareciam que
nunca chegariam, estão ai, batendo na porta.
Ao mesmo tempo em que dá uma sensação de que nunca avançou-se
tanto, em tão pouco tempo, vê-se retrocessos assustadores. Ainda há
mentalidades de séculos atrás vigorando, no senso comum, nos
jornais, nas discussões entre família e, claro, nos partidos
políticos.
É neste último ponto que pretendo me ater. Os partidos que antes
polarizavam-se entre 'direita' e 'esquerda', hoje flexibilizaram esta
relação a um ponto, em que é quase impossível distingui-los. E
mesmo que ainda (alguns) se diferenciem pelo seu discurso, na prática
estão cada vez mais parecidos. Vem dai o crescente desinteresse das
novas geraçoes neste modelo. Todos parecem tão iguais, tão bem
maquiados, com frases de efeito e sorrisos impecáveis, que fica
difícil perceber o que os diferencia.
Ao falar isso, preciso deixar claro que não se trata aqui apenas de
uma crítica, como se todos fossem 'farinha do mesmo saco'. É claro
que não são, há excessões, há muitas pessoas realmente bem
intencionadas, há grupos e partidos que, de fato, querem construir
uma sociedade melhor, mais justa e solidária. Mas o que me leva hoje
a escrever, é a vontade de discutir, dentro destes espaços de
poder, dos partidos e da própria militância, o papel da mulher
jovem e mãe.
Nossa história está repleta de exemplos de mulheres que
participaram (e participam) da vida militante, de 'heroínas', de
guerrilheiras, presas políticas, quase todas transformadas em
mártires, por de alguma forma abdicar de suas vidas pelo ideal que
escolheram defender. Me ocorre que é importante sim, lembrar seus
feitos, mas me pergunto: estas mulheres, não terão amado? Não
tinham medo? Não terão tido filhos? Se os tiveram, não os levaram
ao colo? Não perderam noites de sono? Não se sentiram nem por um
momento inseguras?
Me aflige perceber que quase todas estas 'heroínas' tiveram que
negligênciar suas vidas e de seus filhos, para que pudessem
participar da mesma forma que os homens dos espaços de poder. E
porque teriam elas feito esta escolha? Porque ainda, infelizmente,
impera um discurso que faz parecer que as mulheres, para terem seu
espaço respeitado, precisam 'dar conta de tudo'. Precisam ser
'super-mulheres', que não discuidem das crianças enquanto articulam
manifestações, e de preferência, façam tudo isso sem reclamar, e
mantendo-se dentro do padrão de beleza. No entanto, este discurso ao
invés de libertar, oprime cada vez mais as mulheres, que são
impelidas à disputar sem condições de igualdade, numa batalha
frustrante, que pouco difere da opressão de séculos atrás.
Se antes as mulheres não participavam da política porque não eram
consideradas cidadãs, porque eram vistas como muito 'sensíveis' e
nada racionais, hoje as mulheres passam a poder participar da vida
política, desde que escolham viver como mártires, sofrendo em
silêncio e mantendo a postura inabalável. Vivemos então uma
inversão, neste novo cenário, a mulher 'apta' a participar da
política é aquela que não expressa emoção, não se queixa, 'não
traz os problemas de casa' e mantém-se 'produtiva'.
É por isso que ainda somos tão poucas, as que ousam continuar
militantes sem abrir mão de ser mães e de gozar o direito ao
exercício pleno da maternidade, sem sentimento de culpa.
Mas ai entra a questão da longa duração das mentalidades, que
antes me referia. Parece para muitos incompatível que uma mulher
queira aproveitar a experiência de ser mãe e ainda assim continuar
atuando como militante. Pede-se então que se faça 'escolhas', ou
utiliza-se o argumento (cruel) de que ela 'se encaixaria melhor' em
uma função 'menos desgastante'. Ainda há aqueles que insinuam que
'não é uma questão pessoal', mas que, infelizmente, é preciso que
ela procure outro espaço porque passou a ser 'insuficiente' para a
função. Este tipo de pensamento, nada mais é do que machismo, que
pode ser muito sutil, aparentar ter boas intenções, mas que
continua servindo de base para a opressão das mulheres.
Não há nada de novo neste tipo de argumentação, ela apenas
reflete o velho pensamento que sustenta o sistema capitalista, de que
as pessoas 'valem' pelo que 'produzem'. Além deste peso, carregam
nas costas as mulheres à necessidade de adaptarem-se ao modelo, ou
de 'heroína-martirizada', ou de 'mãe-dona de casa', ou de
'super-mulher', em todos esses casos, são modelos que sufocam, que
restringem, e que levam ao gradual abandono das jovens mulheres mães
de suas atividades militantes. A impressão que dá é que fecha-se
um cerco sobre as mulheres, de forma à impeli-las para que se
agarrem à um modelo, e claro, optando por qualquer um, acabam por
limitarem suas vidas, como se não pudessem transitar por eles.
Muitos já teorizaram esta questão, há décadas se discute,
principalmente dentro dos partidos políticos 'de esquerda' que é
preciso oportunizar a participação das mulheres nos espaços de
poder. No entanto, entre a prática e o discurso há um abismo
enorme. É preciso buscar este encontro, é preciso insistir para que
não passe como 'normal' ou 'natural' este tipo de situação. Para
que tenhamos de fato, 'mais mulheres na política e mais política
para as mulheres', é preciso quebrar, progressivamente esta
mentalidade.
"Quando
uma mulher entra na política muda a mulher, quando muitas mulheres
entram na política, muda a política" (Michele Bachelet)